Saturday, July 12, 2014

Miguel

Fui desenterrar este à defunta Lombriga, de Fevereiro de 2006...



Olá MiG-21!

Os meus votos atrasados de um Feliz Aniversário!
Espero que tenhas tido um dia fantástico!

O meu dia do teu aniversário foi fabuloso.

Comecei o dia como convém, ou como é suposto – de manhã.
Ainda o galo tentava penosamente sacudir a geada da crista, lá ia eu e mais dois amigos, estrada dentro, rumo à tua festa.
O caminho foi longo, sinuoso até, o carro ameaçou não colaborar, mas lá acabamos por chegar, cedo, como já disse, mas não tão cedo como gostaria, confesso. Começar a caminhar ao mesmo tempo que assistimos ao despontar do Sol no horizonte era o meu objectivo.

Castro Laboreiro estava um cubo!
Não sei se era a primeira impressão de um citadino demasiado habituado ao conforto doentio do ar condicionado, se era do local onde iniciamos o percurso ser desabrigado e ventoso, mas estava um frio enervante, embora impoluto.
Fizemo-nos ao caminho, procurando desde cedo encontrar as belezas do local, coisas banais, mas que nos falam aos sentidos, nomeadamente à vista, ao sentido de estética, mas sobretudo ao sentido da vida.


 Por entre as ameaças do clima e de alguns canídeos, mas não por isso, saimos fora da vila.
Ainda mal tinhamos começado e fomos agradávelmente surpreendidos pela neve gelada que começou a cair em barda. De imediato surge-nos a dúvida, city slicks que somos, o que fazer da nossa programada festa de aniversário perante a ameaça de um nevão valente.
Confesso que voltar para trás era tentador, mas acabamos por prosseguir viagem, a ver que tal a gente se dava com aquilo, admirando de caminho o fenómeno atmosférico, com o qual não estamos habituados a lidar na nossa santa terrinha.

  
Após um desnecessário desvio, retomamos o trajecto original, quase sem desvios, por entre as aldeias, lameiros, campos de cultivo, ribeiras e fraguedos.
O Sol rasgou finalmente por entre as núvens, dando-nos espaço para o habitual deslumbramento pelas coisas maravilhosamente simples da Natureza, da acção do Homem, da vida dos animais.
Falando de animais, acompanhou-nos desde o início uma cadela, castro-laboreiro, algo entradota no que diz respeito à idade. Fez connosco todo o percurso, acompanhou-nos desde o início junto ao carro, até ao regresso ao mesmo, fora os desvios de sua iniciativa, alguns dos quais não poderiamos acompanhar a não ser com a vista. E mesmo assim...
Afável, simpática, malhada, de odor intenso...
De nós obteve o sorriso, a conversa amena, as palavras amigas, os afagos, o almoço e lanche.
Pelo caminho sofreu as agruras de ter escolhido acompanhar-nos, os trajectos difíceis, os escolhos e o tojo do caminho. Sofreu também pelos territórios canídeos alheios que transgredimos, notórios pelas discussões com os seus parentes e semelhantes, e pelas ameaças de mordidelas .
Lá para o final da jorna, ajudou-nos a encontrar uma espécie muito rara nestas paragens, autóctone do Gerês em geral, de Castro Laboreiro em particular, o felinus arvorensis noctivorus albinus, um parente do gato comum, que vive nas árvores, onde se alimenta, sobretudo de aves canoras, mas também do ocasional aracnídeo e dos incautos miriópodes.
A bem da ciência, o Crackers ainda lhe atirou com uma bolacha de água e sal, podia o bichito ter fome, obtendo para nosso desalento uma reacção negativa do animal.
Parecia que nos ignorava.

O caminho pouco depois se nos abriu aos olhos, com o Sol a rasgar por entre as núvens, dando lugar a algum calor que nos secou a roupa ainda húmida da neve.
O percurso fez-se à volta de algumas montanhas em redor de Castro Laboreiro, com o seu castelo altaneiro (1033m), mas que, quem por ali anda à volta conclui, que não é assim tão alto como parece.
Perdidos com os habituais desvios fotográficos, demos por nós a almoçar num agradável lameiro.
Conversa acesa e raios de Sol agradáveis, fomos recuperando algumas forças perdidas, por entre a entusiasmada mastigação do almoço.
Antes de partimos dali foi tempo de festa.
Um bolo, com uma vela de aniversário e tudo, mais a cantoria da ordem.
Houve até fotógrafo.
Festa rija, como é próprio!
Até o canito se alambuzou todo com aquela inesperada fatia de bolo de chocolate que lhe calhou na rifa.
Apenas faltou o mais importante.

 O caminho voltou a desfilar por debaixo dos nossos pés.
Atalhando onde podiamos, pelo Crackers, cujos joelhos lhe estão sempre a pregar partidas.
Pelo caminho passamos por alguns roqueiros bonitos e imponentes. Alguns sem dúvida obras de arte, esculpidas com esmero pelas forças naturais, ou simples devaneiros artísticos de alguns quantos deuses entediados.
De novo atalhamos caminho, já era tarde e o Crackers estava todo empenado.
Foi o momento de mais um desafio, é o que acontece quando não se segue o caminho marcado, e sobretudo quando se é guiado por um imbecil com vocação para bulldozer. Mas tudo correu bem, e quanto mais que não fosse por isso, valeu a pena a dificuldade e o esforço extra.
Não fazemos por constantemente medir as nossas forças com aquilo que nos rodeia, bem sabemos que somos insignificantes. Ainda assim as escolhas pela aventura de um trajecto não planeado (ou mal planeado), tem-se revelado sempre cheias de interesse e entusiasmo por todos. Como foi o caso.
Até o cão seguiu em frente explicando-nos sem falar as diferenças de aderência entre as suas patas nuas e os nossos pés calçados...

A travessia das aldeias, para além dos já costumeiros latidos dos cãos à nossa passagem ( a culpa é mais minha...), e do “bom dia” que atiramos a quem por nós passa ou por quem nós passamos, é sempre oportunidade de encher o olhar e o pensamento, pelo de deslumbramento pelas construcções, pelos hábitos, pelas pessoas. Sou secundado pelos meus comparsas, ensaiando teorias sobre os assuntos e temas que por nós desfilam, tentando deles registar instantes, cores e formas. Um destes comparsas, qualquer dia destes, ainda leva um estalo, pois passa a vida a tirar fotos às miúdas...

A conclusão destas caminhadas é invariávelmente a mesma, e ao mesmo tempo sempre diferente. Vimos de lá, seja lá onde for, ricos pelos sentidos, mas sobretudo pelo sentido da vida que não temos, e que saudávelmente invejamos o dos outros. Trazemos os alforges cheios de imagens, etéreas (sempre), a roupa húmida da transpiração corpórea ou da chuva (ou neve), as botas cheias de uma massa castanha de odor intenso, as pernas cheias de arranhões, o cabelo despenteado, as mãos com espinhos e farpas.

Vimos cheios de tudo sem ter tirado nada de lá.
Vimos fartos. Carregados e ao mesmo tempo extremamente leves.
Nada lá deixamos que não fosse dali.
Pouco mais alteramos que meia-dúzia de ramos secos partidos, a ocasional regadela na vegetação, e sobretudo a nossa pegada no terreno, qual Armstrong perpectuado no fino pó lunar.
Queremos sempre voltar, antes mesmo de termos saído.
Encontramos sempre mais coisas que gostariamos de ter feito, mas que fica para a próxima vez.

Obrigado MiG-21 por uma festa fantástica e única!

Para o ano já sabes que contas connosco.

« No silêncio meditativo dos fraguedos, onde o tempo dir-se-ia haver parado na sua marcha inexorável, como voz dorida da própria paisagem (...). Nem uma árvore pôe uma nota de vida vegetal nos cimos graníticos.»

« O Homem sente-se esmagado perante o ambiente austero, e nos recessos nublosos da consciência, em face desses rochedos soerguidos para o alto, ouve-se o tumultuar eterno da inquietação humana perante o mundo.»


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