Sunday, November 16, 2014

O Palmilhas, as “alavanjes”, e a Lenda do Porco sem Nome.

Pelos vistos, reza a lenda, ou as histórias mal contadas por escuteiros degustadores de cogumelos alucinogénios, que anda por estas paragens a alma penada de um porco que, em noites de Lua Cheia, procura cogumelos para comer, e assombra todos os que, os pisam, colhem ou simplesmente os tocam.
Um primeiro registo desta assombração, foi feito há mais de trinta anos, no denominado “Vale dos Deuses”, aquando de um encontro regional de escuteiros, e que nos foi contado pelo “Palmilhas”.
 




O Palmilhas, as “alavanjes”, e a Lenda do Porco sem Nome.
(relato pessoal feito pelo “Palmilhas”)

A primeira vez que ouvi falar desta lenda foi quando, era jovem candidato a escuteiro, ainda sem ter feito sequer promessa, participava numa actividade regional, durante uma caminhada nas serranias, o chefe que ia a acompanhar a patrulha disse-nos, de uma forma pouco normal ou à vontade, que ninguém pisasse, pontapeasse ou molestasse de maneira alguma nenhuma espécie de cogumelos ou trufas que por acaso encontrasse no caminho. A princípio pensei tratar-se daquilo que faz parte do modus vivendi do escuta, não maltratar animais ou plantas até que, num determinado ponto do percurso, o chefe fez algo que me deixou ainda mais intrigado. De uma forma quase frenética, obrigou-nos a fazer um desvio de uns três quilómetros ou mais, para não pisarmos uma turfeira, que era suposto atravessarmos, por esta se encontrar atapetada de cogumelos. Até achei que o tipo era panca, ou assim. Quando me lembrei de perguntar o que era afinal, outros elementos do grupo mandaram-me calar e um deles lá por fim deixou escapar entre dentes: por causa do porco.
Fiquei sem perceber.
À noite, depois do fogo de conselho, já cansado e enfiado até às orelhas no saco-cama, não pude deixar de ouvir bocados de uma conversa estranha acerca da lua cheia, do porco e de um fantasma, mas o sono tinha levado a melhor, tudo o que ouvi, ou pensei que ouvi, não fazia nenhum sentido…
A meio da noite acordei aflito, e antes que inundasse a tenda, vesti-me à pressa e corri para fora do campo encontrando o alívio contra um eucalipto, e encontrando também o chefe, que me perguntou se eu não sabia onde era a latrina. Tarde de mais, já eu sacudira e recolhia o apêndice peniano para recolher, eu próprio, ao conforto do saco cama.
Vou eu a caminho da tenda, tentando não me perder. A luz do luar era pouca, por entre as sombras das árvores, e de noite as tendas são como os gatos, são todas pardas. Ainda ouvi o chefe dizer um «tem lá cuidado onde pões os pés», tropeço numa espia de uma tenda, e dou um bate-cú monumental, sacudi-me a contorcer-me com dores e de espanto, e fui-me deitar tão depressa como caí.
Depois disto não consegui mais dormir, pois quando me voltei a enfiar no saco cama, ouvi um ruído semelhante a um uivo cadavérico e um “snifar” que volta e meia ouvia ao redor da tenda, ao mesmo tempo que de quando em vez o “snifar” era interrompido por uma espécie de ronco (estaria alguém a ressonar?). Confesso que fiquei muito assustado.
Só de manhã vi o que tinha feito, tinha aterrado em cima de uma mão cheia de cogumelos, que esborrachei, ficando colados às calças, que me prontifiquei de imediato a raspar dos fundilhos, não fosse ninguém me voltar a falar do assunto, nomeadamente o chefe que, não dormiu a noite toda também, sabe-se lá porquê.
Anos mais tarde percebi que afinal tinha ouvido a alma penada do porco, a noite toda a rondar a tenda, à procura dos cogumelos que tinha esmagado…

Quando era Bibliotecário, li alguns dos livros antigos que havia no agrupamento, num livro da antiga Patrulha Ornitorrinco, um dos relatórios de especialidade, escrito de um escuteiro chamado Asdrúbal, conhecido por “o gago”, despertou a minha atenção. Aqui estava transcrito o relatório que ele apresentou para a insígnia da especialidade de Historiador, cujo tema era efectivamente a “Lenda do Porco sem Nome”.
 


Lenda do Porco sem Nome [*]

Apresento o meu trabalho para a insígnia de especialidade de Historiador, subordinado ao tema da Lenda do Porco sem Nome.
O porco em questão, da espécie porcus dalmatius, pertencia ao Sr. Joaquim das Lajes, que o tinha comprado na feira dos porcos, na Corujeira, no Porto. Mineiro de profissão, trabalhava a lousa nas minas de S. Martinho do Lajido, e como vivia sozinho tinha diversos animais por companhia, de entre eles um porco. O porco era tido na aldeia como sendo muito inteligente, característica da espécie, e o Sr. Joaquim tratava-o como se trata um filho, dando-lhe banho na banheira e vestindo-o, aos domingos quando iam ambos à missa. Tinha também cães, que eram três, dois rafeiros e um outro rafeiro raçado de rottweiller. Um dos rafeiros era manco (o “Tripé”), um outro cego da vista esquerda (o “Camões”), e o outro mau como as cobras (o “Ferradela”), este último sempre fechado num dos galinheiros vazios, tal era a vontade dele de ferrar tudo e todos.
O Tripé e o Camões andavam soltos, assim como o porco, mas o porco não tinha nome, só se chamava porco, e passeavam pela serra livremente, vindo à noitinha esperar o dono à saída da fábrica, dormindo aos pés da cama com ele, excepto o porco, que dormia ao fundo da cama debaixo dos cobertores, junto com o gato siamês, de seu nome Alberto. O porco era muito friorento.
Os três amigos, os cães e o porco, passavam o dia pela serra, a explorar a montanha. O porco ajudava-os a caçar coelhos e lebres e perdizes, e os cães ajudavam o porco a encontrar toda a espécie de cogumelos e trufas, mesmo os venenosos, que o porco comia com sofreguidão e fazendo sempre uma grande javardice e alarido como era da sua natureza.
Um belo dia, ou um dia qualquer, os três amigos andavam de volta do bosque de pinheiros que cobria a escombreira de lousa, à procura de cogumelos que por ali medravam na sombra dos pinheiros. O porco encontrou alguns, mas o local era escorregadio, os cascos não ajudavam muito a lá chegar, e na cegueira da gula em os comer, escorregou pela escombreira abaixo e foi cair num dos poços verticais, cheio de água, de onde já não saiu, não porque não soubesse boiar ou mesmo nadar até à borda, mas porque as paredes verticais eram quase lisas, e os cascos e os seus 250 quilos não ajudavam muito na escalada.
Nem tudo era mau, cresciam imensos cogumelos na borda da água, e por ali ficou a boiar e a comer durante dois dias, sempre esperançoso que o Tripé e o Camões conseguissem explicar ao Sr. Joaquim o sucedido. Tal não veio a acontecer já que, os cães não falam.
O pior aconteceu ao 3º dia. Um grupo de miúdos ali das redondezas, no regresso do rio onde tinham passado o dia a refrescar-se do imenso calor que se fazia sentir, acharam por bem ir brincar um pouco para aquela zona que conheciam por “alavanjes”, como lhes chamava um deles que não conseguia dizer avalanches direito. Avalanches porque era o que acontecia quando largavam uma pedra maior lá do alto da encosta por ali abaixo. Decidiram pois, em má hora, pelo menos para o porco, desatar a atirar pedras aos poços que ladeavam o caminho por onde passavam.
O porco estava a dormir quando tudo aconteceu.
Dormia o sono dos justos, ou pelo menos o sono dos fartos, já que tinha enchido a malvada de mais uns quantos quilos de cogumelos, e já sonhava com a próxima refeição quando tudo aconteceu. Os rapazes foram atirando pedras aqui e ali, aumentando gradualmente o calibre das pedras, e quando chegaram àquele poço, um dos mais largos, entenderam atirar uma grande e gorda laje de xisto que conseguiram por a rodopiar até ao fundo do poço, onde chegou num enorme e barulhento “BONC”.
A pedra caiu em cheio em cima da cabeça do porco, padecendo este de forma instantânea de traumatismo craniano, ao mesmo tempo que, soltou, aquilo que foi relatado mais tarde com o um expirar demoníaco, ou o expirar infindável de um ressonar, um prolongado “ssssss” sibilante, como quando um balão se esvazia. Ao mesmo tempo, o ar adquiriu uma estranha tonalidade esverdeada e ficou empestado com um pivete a matéria fecal podre e metano.
Os putos correram esbaforidos para suas casas, e durante semanas nenhum deles ousou tocar no assunto, muito menos andar por aquelas paragens.
Só mais tarde se voltou a falar do assunto, quando surgiram relatos de estranhos fenómenos acontecerem aos cogumelos da região, nomeadamente na estufa do Sr. Alcibiades, na povoação de S. Martinho de Baixo, na encosta da serra, em que as produções de cogumelos começaram a ficar verdes e a azedar, quando não desapareciam como que por artes mágicas nas noites de lua cheia.
Algo semelhante aconteceu aos cogumelos da serra que começaram a ficar verdes e a cheirar mal sem razão aparente, tanto que a apanha de cogumelos selvagens passou a ser proibida pela Junta de Freguesia, sob pena de elevadas coimas, em todas as fases da Lua.
Acresce a isto que, nas noites de Lua Cheia, cada vez que alguém tentasse apanhar cogumelos, eram perseguidos por um vulto que lhes grunhia de uma forma descrita como “cadavérica” levando as pessoas a fugir atirando os cogumelos para o chão. Voltando ao local de dia, para apanhar os cogumelos que tinham caído, não se encontrava nenhum dos cogumelos.
Em todos os relatos, eram encontradas inúmeras pegadas de porco nos locais onde se registavam os fenómenos.
As populações ali ao redor contam e recontam estas histórias vezes sem conta nas noites de Lua Cheia, ou depois de uns copitos, quando não há futebol na televisão dos pobres.


[*]Prova da Especialidade de Historiador do Explorador Asdrúbal Almeida, da Patrulha Ornitorrinco, 21 de Outubro de 1984, compilada recorrendo ao recontar destas pela população da aldeia de S. Martinho do Lajido, com a ajuda da Casa do Povo dos Louseiros do Lajido.

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