Wednesday, October 12, 2011

O Contrabandista - a Génese [pré-episódio 1]


Vestiam-se de igual mas na verdade era um grupo de jovens heterogénio.
Tão heterogénio que considerá-los um grupo era, em sim mesmo, tão desprovido de sentido que, podiamos considerar tal ideia um absurdo.
Mas enfim, subiam e desciam pelos montes e vales de forma alegre e contente e dessa forma sadia partiam para as vidas de cada um, ainda que doridos e com bolhas nos pés e mãos e, tantas vezes, com o corpo a latejar pelos espinhos cravados (essencialmente de tojo), e as botas impregnadas de bosta.
Assim iam, com as suas caras luzidias e o olhar a transbordante de luminosidade, nas suas indumentárias idênticas, de criança, à antiga, calções com meias com jarreteiras de lã colorida e lenços de cores no pescoço. Todos.
Quer dizer.
Excepto um.
Por lá havia um que trazia algo que fazia lembrar um velho pano de mesa, ou mesmo um guardanapo de pano, aos quadrados. Os seus pais não tinham muitas posses, logo se vê. Nos pés botas de couro e borracha, daquelas das obras ou da aldeia, confortabilizadas pelas palmilhas em papel de jornal.
Chamavam-lhe o "Palmilhas".

O busílis da nossa narrativa decorre de uma das suas andanças montanheiras, o grupo dividiu-se para a sadia práctica de orientação, com cartas topográficas e bússola, estando prevista a sua reunião lá no alto, onde iriam também pernoitar, num local idílico mesmo junto a uma cascata entre duas cumieiras, de umas montanhas com um nome que sempre era o mote para as mais acesas discussões, chamavam-se as montanhas as «Jurêlhas de Cristo», também eram conhecidas por «Zurêlhas de Christo», como figurava nas cartas de 1947, como um deles gostava de recordar. Só o pronunciar deste nome iria também gerar as habituais discussões de caminho, ou as tertúlias nocturnas à volta da fogueira ou a acesa prosápia a gerar cansaços antes de dormir, nunca tinham sido suficientemente conclusivas ao ponto de explicar aqueles nomes de forma inteligente. O máximo que alguma vez assentaram foi que o nome tinha sido dado pelas gentes antigas que, naturalmente, eram tão versados nas letras como o gado que apascentavam.
Pernoitariam lá em cima nas suas tendas azuis e dentro dos seus sacos cama de cor de laranja, depois de um repasto, e de uma fogueira ladeada de cantorias e teatrinhos para lhes fazer levantar o moral e afastar o frio, os nhonhos e os lobos, pois como se sabe estes últimos são avessos às manifestações de cultura popular, como os bailaricos de aldeia e a época de caça à perdiz [*].

O nosso grupo de andarilhos, experimentado na leitura empírico/holística de cartas topográficas tinha deixado as cartas na sede, e bússola no carro e, na altura, o GPS ainda seria considerado um fruto de um devaneio pouco credível de um escritor de ficção pouco ou nada científica, pelo que o caminho foi feito sob protesto dos restantes membros da Patrulha Ornitorrinco, que foram o caminho a massacrar o Guia pelo esquecimento. Não o esquecimento do material, esse trouxeram-no quase todo, fora as cartas e a bússola, mas antes o esquecimento do Coutinho, o elemento mais novo do grupo, e por isso a “mula de carga”, que por lapso tinha seguido com a outra patrulha …

O que lhes valeu foi o facto de haver uma estrada romana.
Não que a estrada romana fosse dar onde queriam, em princípio seguiria até Roma, mas sentiram-se mais animados a prosseguir. Mais adiante a estrada acabou e seguiram por um caminho de pé feito, que se entrelaçava montanha acima por entre uns estranhos mecos pintados de tinta plástica branca que apenas tinham gravadas duas letras de forma grosseira, uma de cada lado, uma oposta à outra, um “E” e um “P”. Acharam curioso, discutiram a antiguidade do achado, seria romano, visigodo, ou mesmo celta, comeram uma bucha, ainda tiraram notas e medidas ao achado para a prova de arqueologia, fizeram fotografias em grupo, e uma outra, ao Guia, a regar uns arbustos, e lá seguiram caminho.

Mais adiante, continuavam eles pelo serpenteante caminho de pé feito quando, sem se aperceberem, os mecos brancos seguiram uma caminho diferente. Pensaram que se teriam gasto em altitude, com o clima agreste e as amplitudes térmicas. Mas não. Estiveram para descer, voltar a seguir a fileira de mecos brancos, mas entenderam que o melhor caminho era sempre em frente, pelo caminho de pé feito, porque este era sobretudo rumo ao desconhecido e à aventura, como é espírito dos Ornitorrincos.

Ainda mais à frente, o “Palmilhas” descobre a outra patrulha, a Patrulha Andorinha, do doutro lado em relação ao vale e ao regato miudinho que corria lá em baixo, inclusivé viram-nos a fazer sinais de Homógrafo, aos quais eles responderam acenando e sorrindo. Logo se vê, o Guia também tinha metido as bandeirolas na mochila do Coutinho. Se ao menos tivessem trazido a tabela com os sinais, podiam pelo menos perceber o que estavam a dizer.

O dia foi se passando, a noite veio e, a única forma de se guiarem era a sua persistência e as estrelas. Por sorte havia luar, um daqueles luares que alumiava tudo e também o caminho. Por azar, o céu estava encoberto e, para cúmulo, a região estava infestada de lobos, só lhes bastava esperar que já tivessem jantado ou, pelo menos, fossem vegetarianos ou desdentados ou assim.

Antes que a noite ficasse ainda mais escura decidiram ficar abrigados debaixo de um pequeno bosque de abetos e conseguiram fazer uma fogueira num local mais abrigado.
Alumiados pela fogueira, e sem pegar o fogo a nada conseguiram montar uns abrigos, e depois de um jantar frugal: um pacote de bolacha Maria, três maçãs, um Kit Kat, dois pacotes de açúcar, um pacote de M&M, uma banana já pisada e uma pequena porção de água para cada um, o que, a dividir por seis almas esfomeadas ... quer dizer, não era assim muito.
Pelo menos descorreram deixar para de manhã os dois litros de leite e os "Hkorn Flokcs" (cornflakes da loja chinesa), para o pequeno almoço.

Tiveram o cuidado de apagar a fogueira antes de recolherem ao conforto do abrigo e a uns sacos cama improvisados com caruma e musgo, mas o método usado fez com que não conseguissem dormir de imediato, pois o abrigo era aberto para o lado da fogueira, o vento estava de feição e, para além do fumo, havia uma pestilência a urina que, por certo, não haveria lobos com ou sem fome que se aproximassem tão cedo …


[*] - sobre a questão da caça à perdiz, ao que parece nestas paragens raianas, e à semelhança do que acontecia nos Urais no tempo do Zézito Está Line, quando abre a caça à perdiz é bom que toda a outra caça, nomeadamente os lobos, tenham a documentação em dia, pois mais que fazerem prova de que são lobos, devem sobretudo fazer prova de que, efectivamente, não são perdizes.

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