O Contrabandista – o Encontro [pré-episódio 3]
Já se notava alguma claridade quando o “Palmilhas” decidiu que não aguentava mais.
Levantou-se, saiu da tenda a sacudir o frio e, na orla do bosque, por entre uma moita aliviou-se de uma forma que ousamos dizer … violenta. De tal forma violenta que, acordou toda a Patrulha Ornitorrinco e inclusivé umas perdizes que estavam, também elas a dormir o sono dos justos, numa moita ao lado.
Enquanto apreciava os prazeres simples do alívio do esfíncter e pensava na vida, pareceu-lhe vislumbrar o vulto de alguém que subia a encosta pelo caminho de pé feito, e atrás de si um outro vulto, maior, talvez um animal de carga. Ou isso ou um urso.
-- Ó pessoal, vem aí alguém!, gritou.
O Guia da Patrulha Ornitorrinco, que já se encontrava a terminar a sua higiene matinal , que consistia em pentear-se durante cerca de 15 minutos para depois poder colocar a boina no sítio certo, saiu da tenda e dirigiu-se ao caminho, de encontro aos ditos vultos para os saudar, ainda que os seus modos fossem mais de um polícia de giro que interpelava alguém, saindo do meio das sombras, por entre o contra-luz do sol nas suas costas e as sombras do bosque.
Um pouco abaixo o vulto estancou e quase pareceu querer correr em todas as direcções, colocando-se por fim, por detrás do outro vulto, que agora assim ao perto, fazia supor que fosse um amontoado de lenha e giestas secas com quatro patas.
-- Bom dia! – exclamou o Guia.
-- No dispare! No levo más nada que leña para mi madre que está mui enferma! – bradou o vulto de lá detrás do que o Guia, já mais próximo, se certificou ser uma cavalgadura.
-- Disparar? Não percebo Senhor ... er ... No ti entiendo... – respondeu, aranhando o seu melhor espanhol aprendido à custa de comer muita bolacha CuÉTara.
-- Senõr Guardia, tenga pena de mi, soy um pobrecito campesino que ando apanhando leña para my pobre mamacita que és muy enferma e esta entrevadiña. – voltou a vociferar por detrás da mula.
O Guia aproximou-se um pouco mais, afagando o focinho e pescoço da besta, de carga, e atrás desta deu de caras com um homem de média estatura, dos seus 40 e muito anos, vestido de camuflado e samarra.
O homem olhou para este miúdo de roupagem estranha à sua frente e perguntou:
-- Afinal, quien husted? No es de la Guarda?
-- Bom dia. (fez a saudação com boina) Não, nós não somos da Guarda, nós viemos do Porto. Somos Escuteiros. Andamos a fazer uma prova de orientação mas perdemo-nos do nosso chefe, e passamos aqui a noite. Sabe onde fica a “Cascata da Gorda”?
-- Ah? Non son ... quer dizer, voçês não são da Guarda? De certeza? Essa farda... não sei, não me estão a querer enganar?
-- Claro que não! O Escuteiro não mente! E o Sr., o que faz por aqui, é de cá?
-- De certeza que não me estão a enganar? Não são da Guarda?
-- O Escuteiro Não Mente! Somos do Porto, já lho disse.
-- Então saiam-me da frente que eu tenho de ir dar palha à mula.—E começou a acelerar caminho fora puxando a mula.
O Guia segue-o e insiste se ele não queria tomar pequeno–almoço com eles, e volta a perguntar se os pode ajudar a saber afinal onde fica a “Cascata da Gorda”, das “Jurelhas de Cristo”.
O homem pára e responde:
-- AH? Mas isso é do outro lado da fronteira, em Portugal. Voçês estão em La Montaña Blanquita. – virou-se para trás e apontou – estão a ver naquela montanha aquele encaixe ali do lado esquerdo? Conseguem ver o bosque? Acima um bocadinho consegue-se ver assim um fio esbranquiçado, é a cascata. Estão a ver?
-- ... de facto, estamos completamente fora do nosso objectivo.
No entretanto já toda a Patrulha Ornitorrinco estava devidamente fardada e ataviada e alguns deles inclusivamente de cara lavada, de volta daquele quadro pitoresco.
O homem viu juntar-se toda esta gente e ia a recomeçar o caminho e o Guia volta a meter conversa.
-- Olhe, muito obrigado pela ajuda. Diga-me só mais uma coisa, que confusão é essa toda com a Guarda ... ?
-- Shiu! Aqui os arbustos tem ouvidos. Claro que sim e é da Guarda Fiscal que ando a fugir. Se eles me apanham vou da cana e ainda me apreendem a mercância.
-- Ah, essa Guarda, mas então não é lenha que carrega? Então o Sr. É contrabandista?
-- Não tenho tempo para estas coisas. O Sol já vai alto.
-- Mas o Sr. é contrabandista, mas porquê,... se já não há fronteiras? – pergunta o “Bolinha”, o elemento de maior compleixão física do grupo (mais fazia lembrar uma orca gorda, mas ninguém lhe chamava gordo por pena do rapaz).
-- Porquê? Sou contrabandista por vocação. E que história é essa das fronteiras?
O Guia explicou, -- Há mais de 20 anos que foram abolidas as fronteiras, a Guarda Fiscal já não existe, desde então é livre o trânsito de pessoas e bens entre os países ... não sabe o que é a UE?
-- U-quê?
-- UE, União Europeia, a união económica entre os países europeus. Não me diga que não sabe o que isso é? Não lê jornais, não vê televisão?
-- Quero lá saber disso, tenho é de levar a mercância e ir dar palha à mula. Voçês parecem lá os malucos da aldeia, a ver se me enganam é o que é, que a guarda não existe e outras mentiras iguais. Se me desleixo à Guarda bem que eles me apanham. Com orgulho posso dizer que há mais de trinta anos que ando a fugir à Guarda e até hoje nunca me apanharam! Olha estes, eu a pensar que os tipos eram mesmo escuteiros ou lá o que é, rapazitos novos e já tão mentirosos. Olhem que Deus castiga! Vão depressa para o lado de lá que se a Guarda vos apanha ainda pensa que são contrabandistas ... Eu mal chegue á vila vou avisá-los... não corram não ...
E desatou em acelerada correria puxando a corda à mula, que lhe zurrava nomes feios por certo a cada esticão.
Ficaram uns a olhar para os outros sem saber o que dizer, num silêncio que se prolongou até que o deixaram de ver no caminho.
Arrumaram tudo, limparam o campo, certificaram-se que a fogueira estava apagada e tracando uma série de azimutes feitos a olho, lá seguiram na direção que ele lhes apontou, onde chegaram com muito esforço perto do meio-dia (uma hora em Espanha).
Quando lá chegaram encontraram o Chefe num desespero de meter dó por ter perdido a Patrulha Ornitorrinco. Quando ele se apercebeu que não, chorou baba e ranho de alegria, e arrumou a faca de mato que estava a amolar pois tencionava suicidar-se.
A patrulha retemperou forças e a meio da tarde estavam todos de regressaram a casa.
Ao passar pela aldeia o Chefe foi ter com a Guarda e com a ajuda do Guia da Patrulha Ornitorrinco contaram o seu encontro matinal.
O Guarda riu-se. Virou-se para o colega e exclamou:
-- Ó Quim, estes jovens encontraram, o Manuel Candongueiro. – e explicou que todos na aldeia o consideravam maluco. O tipo insistia em fazer contrabando, e como isso de andar a levar mercadoria de um lado para o outro não era uma actividade ilegal, ninguém lhe ligava muito. Fazia parte do “folclore local”. Um pobre coitado.
E lá voltaram os escuteiros para o Porto, e para as confortáveis certezas do seu dia a dia.
Desta vez, pelo menos, não traziam corpo cravejado de picos...
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