o Contrabandista - Episódio 856
Não conheceu o pai, morreu-lhe tinha ele apenas dois anos, ia a fugir da Guarda quando se despenhou de cabeça por aquelas ravinas. Diz quem viu que não foi bonito, e que por mais que tentassem, não conseguiram raspá-lo todo daquelas bolas de granito onde jazia entalado. Todo o local está cheio de silvas, de tojo e carvalhos pequenos, que nem a voracidade das cabras da Adelaide nem os sucessivos incêndios tem conseguido por à vista. Dizem as velhas da aldeia quando pensam que ele não está a ouvir, que anda por ali alma penada. Quem sabe se não é seu pai, que vela por aquela horrenda mancha vermelha no granito. Sempre que por ali passa, imagina por vezes o que seria se se cruzasse com o espírito de seu pai, de saco cheio de candonga às costas, fazendo o caminho entre as raias, de cá para lá ou à volta. Parece às vezes descobri-lo num trejeito de luz da Lua por entre as névoas e as sombras do arvoredo.
Quis o matreiro destino que o filho do seu pai por ali passasse todos os dias quando lhe tocava a si a pastorícia das vacas da aldeia, naquelas ravinas lugubres onde o espírito do seu pai se separou do corpo, e por isso também passou sempre a fazer o caminho cá por baixo, junto à base da ravina, e á ribeira, já não se arrisca a cair, ou pior a deixar cair a candonga, e assim a Guarda também não o consegue ver bem de cima, mesmo nas noites de luar.
Por baixo, às vezes, também tem outras sortes, sobretudo quando encontra a Adelaide ferrada no sono no meio das cabras, e se calha de a apanhar a cheirar a vinhaça, ainda lhe afinfa nas carnes, sem ela saber ao certo que raio lhe acertou, quando acorda de manhã sem se lembrar onde pôs as ceroilas. Se fosse nas Américas, ainda aparecia nos noticiários aos gritos, que tinha sido violada por extra-terrestres. Aqui, nesta miséria de terra e de vida, o melhor mesmo é esperar que não apareça prenha, se não lá se vai a jorna para pagar o desmancho e também o silêncio da Joaquininha (filha da Graciete) que, como a mãe, desmancha na região há tantos anos que já lhe perdeu a conta.
Prosseguiu o caminho com a burra a gemer pelo peso que carregava nos costados a cada puxão que ele dava pela corda, sempre atento, à escuta, à procura por entre o ruído dos pés e dos cascos, de qualquer ruído, vulgarmente um som metálico de esporas, denunciador da Guarda, lá em cima.
Lá se passou para cá e ainda escuro foi-se deitar. Amanhã a sua velha mãe trataria de fazer os pés ao caminho com a candonga que vendia na cidade grande.
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