Casa Correia
Recordo, não sem réstia de saudade, apesar de tudo, as primeiras “quinta-feiras-santas” em que partilhei com colegas de profissão um proverbialmente sublime arroz de cabidela, regado com o mais supimpa verde tinto, que invariávelmente terminou ora no sofá, ora na cama, a roncar que nem um porco, tentanto com dificuldade respirar e fazer a digestão ao mesmo tempo. Não foi fácil. O que vale é que só acontecia uma vez por ano...
A receita é simples, como se percebe, e desde então, tenho tentado, nem sempre conseguido que, neste mesmo dia, a refeição a que chamamos almoço tenha sido um deleite, não só pela refeição em si, como pela companhia, exponênciada pelo facto de não haver o que fazer de tarde para poder apreciar tudo o que bom há na vida ... várias coisas que agora não quero enunciar ...
É já em mim uma espécie de tradição.
Estes almoços de “quinta-feira-santa”, por mim, começaram a tomar outro rumo desde comecei a ir à Casa Correia, ao ponto de, se me perguntarem, eu por mim vou lá sempre que a oportunidade surja, ou sempre que surge a ideia de um almoço sem preocupações, fazendo desta refeição um cerimonial deleitoso prolongado para as papílas gustativas sem olhar para o relógio, nem tão pouco para os bons modos à mesa, nem à volumetria da degustação vinícola.
Almoço tranquilo e deleitoso num dia de trabalho é um prazer e um privilégio que nem todos nos podemos gabar.
Este ano voltei à Casa Correia.
Sózinho que nem um cão sem dono, não há como dizê-lo de outra forma, mas isso não me impediu de prosseguir nesta jornada de luta, conquistada por anos de dedicação à causa, de encher o bandulho.
Sentado a um canto, no reservado onde se sentam os Doutos Juízes, instalei-me para o repasto, pés esticados, mangas arregaçadas para a prometida luta, dos talheres, quais armas, contra o repasto.
Mas desta vez algo de diferente pairava no ar, uma ameaça está à porta, num letreiro escrito “PASSA-SE”, o que me fez aqui voltar em força, passei-me mesmo, pois uma ameaça como esta é de assustar qualquer um, como que se de uma assombração se tratasse, a ameaça de poder vir a morrer antes de aqui vir, uma última vez que fosse, degustar este verdadeiro manjar dos deuses, e quando digo dos deuses digo literalmente de todos, de todos os credos, mesmo até dos incrédulos.
Não tenho, como nunca tive aliás, palavras para descrever as tripas à moda do Porto que se degustam na Casa Correia onde, recordo, a ameaça paira no ar, ao geito de um áspero e indelicado “nunca mais”.
Se calhar por isso, deixem-me que vos confesse, que fiquei surpreendido comigo mesmo, lenta, pausada, e metódicamente, comi uma meia dose bem servida e um quartilho de vinho. Daí que fiquei muitas horas, se não mesmo até ao dia seguinte, qual cobra, a digerir o repasto.
Sempre atento ao que à minha volta são as pessoas e os movimentos desta espécie de culto de religiosos fervores que aqui vemos, ainda se percebem conversas de quem só agora está a descobrir este templo tripeiro, o que não me surpreende, mas antes me deixa vaidoso, pois a mim a D. Filomena cumprimenta-me de beijos, não dois mas antes três, porque, justifica ela, é conta que Deus fez!
Respiro fundo enquanto tento não perder pitada dos diferentes sabores que as minhas papilas gustativas me dizem estar a sentir, trôpegas já, em completo overdose do sentir. Sabem que as papilas gustativas também tem orgasmos?... As coisas que eu descubro...
E o pudim?
Conseguir espaço para o pudim é sempre um objectivo formidável, sobretudo se houver pudim, confesso que nem sempre tenho essas sortes, não foi o caso.
Uma bela dose de pudim, e o que resta do vinho foi o meu objectivo seguinte, pois bem sei que o estômago é um saco feito de elásticos e com boa vontade tudo se consegue lá meter.
Dei por mim a ser observado pela senhora da frente, quando esta reparou que eu levei o pulso à boca, parecendo quase pornográficamente beijá-lo pela forma como o abocanhei (até a mim me pareceu o mesmo). Olhou-me expressivamente intrigada com aquilo ao que eu lhe disse: caramelo (que me tinha caído da colherada anterior).
Como a mente já ligeiramente amortecida pelo bandulho cheio de tripas e regado com um maduro sobre o qual não fiz perguntas, pois é da casa, fiz-me ao caminho.
Vieram-me à ideia as palavras de um colega que, quando vinha de almoçar na Casa Correia, lhe perguntavam: então as tripas?
Sempre respondia igual à vez anterior: É pá, é caro! Mas as tripas .............
No seu silêncio adjectival já se supunha que as tripas estariam, como sempre, do outro mundo!
Foi o que eu achei e eu já lá não ia à cerca de 3 meses o que, convenhamos é um exagero.
O Meu Porto é feito de alguns locais, todos eles bons, mas para as Tripas é a Casa Correia.
Só à QUINTA-FEIRA
Casa Correia
R. Barbosa de Castro, 74
Telef. 222056651
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