Monday, August 15, 2016

Estupidez




Sentei-me com uma folha de papel vazia à frente para escrever sobre o vazio das ideias e a desolação das folhas de papel em branco. Verifiquei o conteúdo aparente do bolígrafo e pareceu ter pouco mais de meia carga. Inalei uma quantidade que me pareceu boa de matéria gasosa e ensaiei o movimento da mão que segura o bolígrafo. Expirei.

Nada.

Nada foi o que me respondeu a mão que segura o bolígrafo. Recostei-me na cadeira e fechei os olhos para olhar para dentro tentando procurar onde andariam as ideias, as construcções frásicas, a veia para o meu subconsciente irónico-ácido, tão prestável e sempre na ponta da língua.

Nada.

O braço teimou imóvel e parado, o bolígrafo no lugar de onde não tinha saído e eu, recostado continuei, inclinado para trás e de olhos fechados a pensar no vazio disto tudo. Não, algo entretanto mudou, mas não consigo perceber, talvez... ah, já percebi, doem-me as costas.
Decidi-me exercitar o seguinte exercício que consiste no imaginar-me num palco sem luz, de noite, perante uma massa de gente ansiosa já, que ocupa todos os lugares quase à galeria. Alguns estão de pé. Olhei à minha frente e à minha volta e vejo também, lá ao longe, em arco, as luzes de presença e de emergência. Atrás de mim, uma cadeira de plástico branco no meio do negrume do palco iluminada por um único foco de luz verde. Antes que alguém tenha a mesma ideia que eu, o meu corpo leva-me lá e sento-me, visivelmente cansado, não sem antes dar duas voltas à volta da cadeira, com um ar desconfiado, e depois de me sentar, realizo melhor que, talvez não tenha sido boa ideia, sentar-me sozinho no palco virado para o público.
Conferi a luz que me incidia vinda de cima sobre a minha cabeça e brinquei um pouco com as mãos vendo as formas das sombras projectadas no chão à minha volta. Pigarreei duas vezes e ensaiei um escarro logo arrependido constatando que, pelo menos uma alma solitária lá nas traseiras da plateia destravou uma gargalhada. Toda a gente olhou para ver quem seria.
Pigareei outra vez e a coisa saiu.

Ensaio sobre a Estupidez, comecei com a firmeza firme de um erudito.
Todas as pessoas que tecem alguma espécie de consideração sobre a estupidez são estúpidas. São estúpidas a dois níveis, o primeiro e o segundo, nenhum por ordem de grandeza. O primeiro porque já são estúpidas na essência o segundo porque são estúpidas ao abrir a boca para falar sobre o assunto.
Eu sou estúpido, declaro-o com toda a força! Esta afirmação, faço-a desde já, não porque queira ser o primeiro a dizê-lo, mas porque me preocupa a V. condição de espectadores, logo expectantes, que estão à expectativa que daqui saia alguma coisa que faça sentido. Não quero que passem à condição de estúpidos, tirando-me a razão em aqui estar e reclamando muito naturalmente, o dinheiro do bilhete à saída o que, não sendo uma atitude estúpida, seria estúpido era que eu o devolvesse.
Se já houvesse ecografias quando eu ainda estava a muitos meses de eclodir de dentro para fora do corpo de minha mãe, qualquer obstetra, técnico, ou mulher da limpeza do posto da caixa seria peremptório em afirmar, através da observação simples da imagem de mim qualquer coisa como: é um rapaz porque se lhe vê a pilinha, e é estúpido, basta olhar para ele.

Esta descoberta, no pré-parto, ou logo após o parto, desta patologia, levaria logo o físico, ou mesmo o médico, ainda que veterinário, a receitar medicação adequada para mitigar ou erradicar mesmo o mal de estupidez antes que este se instale, por forma a chegar à idade adulta sem estupidez. Este receituário aplica-se de duas formas, aplicando a técnica denominada IVG [1] muito utilizada em regiões do mundo onde prolifera a estupidez (congénita ou não), ou através de uma outra técnica designada pela sigla “A.” [2], técnica muito comum na aplicação famílias de recursos escassos ou inexistentes em países do terceiro mundo, e também, a mesma técnica, se aplica a ninhadas de gatos.
Não tendo sido isso que me aconteceu, como se pode constatar, chego à idade adulta num estado deplorável de estupidez, conforme podem verificar por mera observação directa através desta modesta luz verde que me ilumina.

(olhando para cima)

A luz verde que me alumia não tem qualquer relação com o meu grau de estupidez, nem com a estupidez em geral, nem é porque que seja uma luz especial que permite identificar a estupidez nas pessoas, é verde como poderia ser de outra cor, era até mesmo suposto ser branca, se não tivesse fundido há coisa de meia-hora e o electricista cá deste espaço de cultura e lazer ter concluído que não havia uma única luz branca sobressalente, o chinês lá fora já fechou (estranhamente às 22H00, que estúpidez!) e o único local em todo o teatro de onde poderiamos canibalizar uma é, pasme-se, a única lâmpada da única casa de banho das senhoras o que, convenhamos, ia dar um problemão quando lá fossem retocar a fealdade, com laivos de pó de arroz, e blush, ou por lá fossem as damas defecar ou mijar mesmo, ou trocar o tampão e, tudo estivesse num anormal estranho e singular tom de verde. O electricista ainda insistiu, que se lixe a casa de banho das mulheres, o espectáculo é que é importante ao que, eu , prestes a rebentar num acesso de raiva, bombardeei: Alcides, meu carvalho[3], por muito que eu gostasse de ver a cara com que saíam as gaiijas depois deste banho de luz verde, acho que estás a ser um nadinha estúpido! Põe a luz verde no palco se faxavori e depressa!

Daí que vos pergunte, sem querer obviamente que me respondam, isso seria estúpido, será que a estupidez é inata? A resposata é que os humanos são seres terrestres, predominantemente bípedes, sem penas, de locomoção autónoma e de postura erecta [4], que são intrinsecamente e de forma natural, capazes de pequenas e grandes realizações estúpidas. Não é por isso e necessário ser-se estúpido de nascença, como é o meu caso, todas as pessoas conseguem ser estúpidas havendo até lugar para que possam, através do estudo em casa através da tele-escola, ou na escola nocturna, aprenderem a ser estúpidos, com direito a diploma e tudo.

Embora, e como é o caso de uma boa parte dos estabelecimentos de ensino, o edifício tanto funciona como escola de dia como de noite, a escola nocturna distingue-se da diurna porque uma tem lugar durante o horário dito nocturno e a outra durante o horário diurno. É tema que aliás conheço bem, não por leccionar nas duas, mas por ter frequentado ambas, mais a diurna que a nocturna e, ainda que a memória me possa pregar partidas, estou convicto que se encontram por lá  estúpidos, tanto de dia, como de noite, daí ser levado a conjecturar que, não há uma relação entre o grau de estupidez e a escola onde se aprende a ser estúpido. O que não é para admirar, pois como se sabe o ensino nesta nossa jovem e bela republica é todo ele uniforme e coeso e além disso consistente na sua estupidez. Direi mesmo que o ensino da estupidez é um exemplo da consistência da estupidez nacional...

Tenho dito!



Notas Explicativas
[1] – IVG – Interrupção Voluntária da Gravidez, ou a variante estúpida IV(N)G, Interrupção Volintária ou Não da Gravidez;
[2] – Afogamento;
[3] – ... acho que não foi esta expressão que eu usei...

[4] – não confundir postura erecta com, põe ovos de pé.

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