Estupidez
Sentei-me com uma folha de papel vazia à frente para
escrever sobre o vazio das ideias e a desolação das folhas de papel em branco.
Verifiquei o conteúdo aparente do bolígrafo e pareceu ter pouco mais de meia
carga. Inalei uma quantidade que me pareceu boa de matéria gasosa e ensaiei o
movimento da mão que segura o bolígrafo. Expirei.
Nada.
Nada foi o que me respondeu a mão que segura o bolígrafo.
Recostei-me na cadeira e fechei os olhos para olhar para dentro tentando
procurar onde andariam as ideias, as construcções frásicas, a veia para o meu
subconsciente irónico-ácido, tão prestável e sempre na ponta da língua.
Nada.
O braço teimou imóvel e parado, o bolígrafo no lugar de onde
não tinha saído e eu, recostado continuei, inclinado para trás e de olhos
fechados a pensar no vazio disto tudo. Não, algo entretanto mudou, mas não
consigo perceber, talvez... ah, já percebi, doem-me as costas.
Decidi-me exercitar o seguinte exercício que consiste no
imaginar-me num palco sem luz, de noite, perante uma massa de gente ansiosa já,
que ocupa todos os lugares quase à galeria. Alguns estão de pé. Olhei à minha
frente e à minha volta e vejo também, lá ao longe, em arco, as luzes de
presença e de emergência. Atrás de mim, uma cadeira de plástico branco no meio
do negrume do palco iluminada por um único foco de luz verde. Antes que alguém
tenha a mesma ideia que eu, o meu corpo leva-me lá e sento-me, visivelmente
cansado, não sem antes dar duas voltas à volta da cadeira, com um ar
desconfiado, e depois de me sentar, realizo melhor que, talvez não tenha sido
boa ideia, sentar-me sozinho no palco virado para o público.
Conferi a luz que me incidia vinda de cima sobre a minha
cabeça e brinquei um pouco com as mãos vendo as formas das sombras projectadas
no chão à minha volta. Pigarreei duas vezes e ensaiei um escarro logo
arrependido constatando que, pelo menos uma alma solitária lá nas traseiras da
plateia destravou uma gargalhada. Toda a gente olhou para ver quem seria.
Pigareei outra vez e a coisa saiu.
Ensaio sobre a Estupidez, comecei com a firmeza firme de um
erudito.
Todas as pessoas que tecem alguma espécie de consideração
sobre a estupidez são estúpidas. São estúpidas a dois níveis, o primeiro e o
segundo, nenhum por ordem de grandeza. O primeiro porque já são estúpidas na
essência o segundo porque são estúpidas ao abrir a boca para falar sobre o
assunto.
Eu sou estúpido, declaro-o com toda a força! Esta afirmação,
faço-a desde já, não porque queira ser o primeiro a dizê-lo, mas porque me
preocupa a V. condição de espectadores, logo expectantes, que estão à
expectativa que daqui saia alguma coisa que faça sentido. Não quero que passem
à condição de estúpidos, tirando-me a razão em aqui estar e reclamando muito
naturalmente, o dinheiro do bilhete à saída o que, não sendo uma atitude
estúpida, seria estúpido era que eu o devolvesse.
Se já houvesse ecografias quando eu ainda estava a muitos
meses de eclodir de dentro para fora do corpo de minha mãe, qualquer obstetra,
técnico, ou mulher da limpeza do posto da caixa seria peremptório em afirmar,
através da observação simples da imagem de mim qualquer coisa como: é um rapaz
porque se lhe vê a pilinha, e é estúpido, basta olhar para ele.
Esta descoberta, no pré-parto, ou logo após o parto, desta
patologia, levaria logo o físico, ou mesmo o médico, ainda que veterinário, a
receitar medicação adequada para mitigar ou erradicar mesmo o mal de estupidez
antes que este se instale, por forma a chegar à idade adulta sem estupidez.
Este receituário aplica-se de duas formas, aplicando a técnica denominada IVG
[1] muito utilizada em regiões do mundo onde prolifera a estupidez (congénita
ou não), ou através de uma outra técnica designada pela sigla “A.” [2], técnica
muito comum na aplicação famílias de recursos escassos ou inexistentes em
países do terceiro mundo, e também, a mesma técnica, se aplica a ninhadas de
gatos.
Não tendo sido isso que me aconteceu, como se pode constatar,
chego à idade adulta num estado deplorável de estupidez, conforme podem
verificar por mera observação directa através desta modesta luz verde que me
ilumina.
(olhando para cima)
A luz verde que me alumia não tem qualquer relação com o meu
grau de estupidez, nem com a estupidez em geral, nem é porque que seja uma luz
especial que permite identificar a estupidez nas pessoas, é verde como poderia
ser de outra cor, era até mesmo suposto ser branca, se não tivesse fundido há
coisa de meia-hora e o electricista cá deste espaço de cultura e lazer ter
concluído que não havia uma única luz branca sobressalente, o chinês lá fora já
fechou (estranhamente às 22H00, que estúpidez!) e o único local em todo o
teatro de onde poderiamos canibalizar uma é, pasme-se, a única lâmpada da única
casa de banho das senhoras o que, convenhamos, ia dar um problemão quando lá
fossem retocar a fealdade, com laivos de pó de arroz, e blush, ou por lá fossem
as damas defecar ou mijar mesmo, ou trocar o tampão e, tudo estivesse num
anormal estranho e singular tom de verde. O electricista ainda insistiu, que se
lixe a casa de banho das mulheres, o espectáculo é que é importante ao que, eu ,
prestes a rebentar num acesso de raiva, bombardeei: Alcides, meu carvalho[3],
por muito que eu gostasse de ver a cara com que saíam as gaiijas depois deste
banho de luz verde, acho que estás a ser um nadinha estúpido! Põe a luz verde
no palco se faxavori e depressa!
Daí que vos pergunte, sem querer obviamente que me
respondam, isso seria estúpido, será que a estupidez é inata? A resposata é que
os humanos são seres terrestres, predominantemente bípedes, sem penas, de
locomoção autónoma e de postura erecta [4], que são intrinsecamente e de forma
natural, capazes de pequenas e grandes realizações estúpidas. Não é por isso e
necessário ser-se estúpido de nascença, como é o meu caso, todas as pessoas
conseguem ser estúpidas havendo até lugar para que possam, através do estudo em
casa através da tele-escola, ou na escola nocturna, aprenderem a ser estúpidos,
com direito a diploma e tudo.
Embora, e como é o caso de uma boa parte dos
estabelecimentos de ensino, o edifício tanto funciona como escola de dia como
de noite, a escola nocturna distingue-se da diurna porque uma tem lugar durante
o horário dito nocturno e a outra durante o horário diurno. É tema que aliás
conheço bem, não por leccionar nas duas, mas por ter frequentado ambas, mais a
diurna que a nocturna e, ainda que a memória me possa pregar partidas, estou
convicto que se encontram por lá estúpidos, tanto de dia, como de noite, daí
ser levado a conjecturar que, não há uma relação entre o grau de estupidez e a
escola onde se aprende a ser estúpido. O que não é para admirar, pois como se
sabe o ensino nesta nossa jovem e bela republica é todo ele uniforme e coeso e
além disso consistente na sua estupidez. Direi mesmo que o ensino da estupidez
é um exemplo da consistência da estupidez nacional...
Tenho dito!
Notas Explicativas
[1] – IVG – Interrupção Voluntária da Gravidez, ou a
variante estúpida IV(N)G, Interrupção Volintária ou Não da Gravidez;
[2] – Afogamento;
[3] – ... acho que não foi esta expressão que eu usei...
[4] – não confundir postura erecta com, põe ovos de pé.
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