Wednesday, September 26, 2007

Entrevista com Deus

No infinito corredor de infinitas portas, paro naquela onde diz, em letras de acrílico:
"Serviços Administrativos"
Não existe botão de campaínha. Quando me preparo para bater suavemente com os nós dos dedos, reparo que junto do orifício do óculo está escrito, em letras pequeníssimas:
"Não bata. Espere."
Espero. Por trás da porta, um rumor indica-me que alguém espreita no óculo. Espero. Nada.
Contei 42 batidas do meu coração. A Porta abre-se e surge um homem com cerca de 40 anos, estatura média, de calças cinza e camisa branca, sem gravata. Informal e discreto.
- Ah! Se vem por causa do requerimento para atribuição de Superlativo Esclarecimento, é melhor entregar pela internet. É mais rápido. - Atirou.
- Por acaso venho por causa do processo de Infinitas Escolhas. Tenho instruções do Departamento da Universal Indiferença para redigir os novos procedimentos.
- Bom, não estejamos aqui á porta a conjecturar. Entre. Eu digo-lhe o que quer saber. - Conduz-me a um gabinete com uma janela velada por um estore translúcido, de cor branca.
Senta-se e indica-me a cadeira em frente. Não é bem uma cadeira. É mais um Fauteil em pele alcântara castanha. Sento-me e tento ser o mais profissional possível:
- Procuro informações acerca do Abrangente Processo da Global Confusão.
- Tem a braguilha aberta.
- O processo?
- Voçê.
- Ops. Obrigado. Em relação ao Abrangente...
- Não há muito a dizer. Fiz 247 alterações ao projecto original. A última delas está prestes a sair.
- Refere-se ao anexo XIV que regulamenta os "Tremendos Impulsos da Líbido"?
- Não, porra. Refiro-me à decisão de instituir o "Inevitável Impulso de Dizer o que se Pensa". Café?
- Sim, por favor. Julgava que esse projecto tinha sido abandonado.
- Pelo contrário: foi refinado. É para prosseguir.
- No próximo milénio?
- Amanhã.
Engasguei-me e saiu-me café pelo nariz. A minha bela camisa azul-claro ficou pintalgada de castanho.
- Bolas. Provavelmente não vai sair. - Observei desolado.
- Sai sim.
- Com detergente para cores delicadas?
- Com uma tesoura. Mas afinal quer saber do projecto ou não?
- Concerteza. Ouvi dizer que se for para a frente vai ser complicado gerir a coisa.
- Nem por isso. A fase inicial vai ser um pouco tensa, mas depois abranda.
- Como vão reagir as pessoas?
- No princípio vão achar estranho mas acabam por se habituar.
- Concretamente...
- Concretamente: toda a gente terá o impulso irresistível de dizer o que pensa. Acabaram-se os processos mentais de filtro social, a hipocrisia funcional, o tento na língua.
- Mas isso vai desencadear uma revolução. Os governos caem. As pessoas matam-se. Os casamentos dissolvem-se. Os advogados serão linchados.
- Vê? Nem tudo é mau... tive ontem uma reunião na Assembleia Geral de Genes Primordiais e todos concordam. O importante está assegurado: Ininterrupta Multiplicação e Combinação Experimental.
Uma comichão na garganta leva-me a uma tosse curta.
O Director observa-me com atenção.
- Nesta altura é normal. São as diferenças de temperatura. Beba coisas quentes. Ajuda a amaciar a garganta. Um pouco de chocolate também faz bem. Tem antioxidantes. Do mais escuro. O branco não vale nada. É a mesma coisa que comer banha de porco. Mais questões?
- Para já não.
- Óptimo. Todavia sempre pode ligar-me para uma ou outra informação. Escusa de vir ao piso 42.
Levanta-se e eu levanto-me também. Acompanha-me à porta.
Saio para o corredor e ele diz:
- E não ligue aos comentários dos cabrões do Departamento da Estratégica Indiferença. A remodelação vai pôr tudo melhor. Desde que não venham com as merdas das regulamentações da Alta Autoridade do Confuso Destino. Nem que a vaca tussa.
- Na verdade corre a opinião que algo melhor poderia ser feito.
- Uma sauna!
- Uma sauna?
- Sim, para a sua tosse. Purifica as vias respiratórias. Seguida de um banho frio é melhor.
A porta fecha-se, sem ruído.